A mulher que não quero ser.
Hoje quando saí do banho minha mãe disse que a esposa do meu tio viria dormir aqui. Perguntei-lhe o motivo e ela respondeu que a sogra do meu tio estava hospitalizada, e das três filhas, apenas a integrante da nossa familia por mero acordo matrimonial, estava no hospital para acompanhar a senhora acamada e havia conseguido contratar por uma noite alguém para acompanhar a dita senhora para que ela pudesse então dormir direito.
Instantaneamente lembrei de um diálogo prévio com minha mãe
-“A Cláudia tá no hospital”
-“Valha, o que ela tem?”
-“Parece que pegou tétano”
E então, começou a discorrer o quão pesado ia ser para a minha avó que acabaria cuidando da Claúdia por motivos de negligência da nora, que já não cuida da própria filha.
É dificil tecer uma linha lógica de raciocínio quando se está repensando as formas de existir no mundo. Mas, o que eu quero dizer é que eu não quero ser a mulher altruísta que abre mão de si mesma para cuidar de alguém (seja familiar ou não), a mártire, a que carrega a cruz mais pesada. A mitologia cristã diz que deus não dá uma cruz mais pesada do que alguém pode carregar, mas é só mais um daqueles argumentos para reforçar a narrativa da mulher submissa que serve ao homem.
A figura da mulher-mártire se fez e se faz presente na minha familia, por ambas as partes, de forma intensa. Lembro da minha infancia, essa irmã do meu pai que teve toda a rotina modificada para cuidar desse marido que sofrera um AVC.
-“Ela é uma santa”
-“Ela tá pagando pelos pecados do marido”
-“Ela carrega mais uma cruz agora”
Contextualizando essa ultima aspa, ela cuida de uma irmã que é cega desde a infância (ou nascimento não lembro ao certo). Essa que também foi rodeada de comentário de culpa cristã. Na época, digo isso porque não lembro de ouvir esse argumento atualmente, acreditava-se que a criança que nasce cega está pagando pelos pecados dos pais. E enquanto escrevo esse texto, me questiono se esse foi o motivo pelo qual minha avó paterna sofreu de depressão severa. Nunca a conheci. Morreu antes que eu me entendesse por gente.
Não quero ser a mulher-maravilha, esse arquétipo tão dificil de sustentar. A mulher que dá conta do trabalho, da família e de um ciclo social ativo, que se exercita com regularidade, que lê livros e tem uma casa linda. É impossivel ser assim, ninguém tem esse tempo todo, e mesmo se tivesse, só reforça o quão o modo capitalista impregnou em nossas vidas onde absolutamente TUDO tem que remeter a produtividade.
Também não quero ser a mulher-empresária (aqui me refiro não ao ramo empresarial em si, mas toda e qualquer mulher que se dedica apenas à carreira mercadológica). Esse esteriótipo da mulher que é bem sucedida, que só existe o trabalho na vida dela, que leva o trabalho para casa mas nunca o contrário, que é extremamente aclamada nesse ambiente mas que não é feliz e ela sabe disso.
E, obviamente, não quero ser a mulher-barbie. Aquela que fala em tom baixo, tem voz mansa, nunca sequer foi vista falando palavrão, usa salto alto e vestido rodado, que não se revolta, que é cordial e sorridente, e que nunca está solteira porque ela é o sonho de todo homem. Esse foi o primeiro tipo que percebi que não queria ser, logo no ensino médio pessoas assim me causavam, e causam até hoje, estranheza e certa repulsa.
Desde criança nos perguntam “O quê você quer ser quando crescer?” e somos instruídas a responder qual carreira de trabalho queremos seguir. Mas para nós, mulheres, o processo é um tanto mais violento do que simplesmente resumir nossas vidas ao imaginário de sucesso imposto pelo capitalismo. Estão sempre nos dizendo quem devemos ser, mas até agora, aos meus 24 anos, eu só sei quem eu não quero ser.